Poético

Infância

Infância

Destaque, Poético
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava sentada cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras lia a história de Robinson Crusoé, comprida história que não acaba mais. No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu a ninar nos longes da senzala - e nunca se esqueceu chamava para o café. Café preto que nem a preta velha café gostoso café bom. Minha mãe ficava sentada cosendo olhando para mim: - Psiu... Não acorde o menino. Para o berço onde pousou um mosquito. E dava um suspiro... que fundo! Lá longe meu pai campeava no mato sem fim da fazenda. E eu não sabia que minha história era mais bonita que a de Robinson Crusoé. Por Carlos Drummond de Andrade Assista também ao programa "Prosa e Segredos, Ontem, Hoje e Se
Política literária

Política literária

Destaque, Poético
A Manuel Bandeira O poeta municipal discute com o poeta estadual qual deles é capaz de bater o poeta federal. Enquanto isso o poeta federal tira ouro do nariz Por Carlos Drummond de Andrade Assista também ao programa "Prosa e Segredos, Ontem, Hoje e Sempre, com Bosco Martins", com pós-produção/texto e edição de Allison Ishy e pós-produção/edição de vinhetas e pílulas de Roque Martins, que divulga o Documento Regional – Raridades com o programa Poesia Total I e II, pílula 29, onde o poeta e jornalista Bosco Martins declama poemas de sua autoria e de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Astor Piazzolla, Vinicius de Moraes, Manoel de Barros e Antônio Maria. Nesta pílula, Bosco Martins recita "Política literária", de Carlos Drummond de Andrade: ? Ficha técni
Os ombros suportam o mundo

Os ombros suportam o mundo

Destaque, Poético
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus. Tempo de absoluta depuração. Tempo em que não se diz mais: meu amor. Porque o amor resultou inútil. E os olhos não choram. E as mãos tecem apenas o rude trabalho. E o coração está seco. Em vão mulheres batem à porta, não abrirás. Ficaste sozinho, a luz apagou-se, mas na sombra teus olhos resplandecem enormes. És todo certeza, já não sabes sofrer. E nada esperas de teus amigos. Pouco importa venha a velhice, que é a velhice? Teus ombros suportam o mundo e ele não pesa mais que a mão de uma criança. As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios provam apenas que a vida prossegue e nem todos se libertaram ainda. Alguns, achando bárbaro o espetáculo prefeririam (os delicados) morrer. Chegou um tempo em que
Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva

Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva

Destaque, Poético
A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas. Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva. De repente não tinha pai. No escuro de minha casa em los angeles procurei recompor tua lembrança Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta De augusto geralmente procrastinava a tarde. Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho Rangia nos trilhos a muitas praias de distância Dizíamos: "e-vem meu pai!" quando a curva Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes Mas ser marraio em teus braços, sentir por último Os doces espinhos da tua barba. Trazias
Balada para um louco

Balada para um louco

Destaque, Poético
Num dia desses ou, numa noite dessas você sai pela sua rua ou, pela sua cidade ou, ou, sei lá, pela sua vida, quando de repente, por detrás de uma árvore, apareço eu!!! Mescla rara de penúltimo mendigo e primeiro astronauta a pôr os pés em Vênus. Meia melancia na cabeça, uma grossa meia sola em cada pé, as flores da camisa desenhadas na própria pele e uma bandeirinha de táxi livre em cada mão. Ah! ah! ah! Você ri... você ri porquê só agora você me viu. Mas eu flerto com os manequins, o semáforo da esquina me abre três luzes celestes. E as rosas da florista estão apaixonadas por mim, juro, vem, vem, vamos passear. E assim meio dançando, quase voando eu te ofereço uma bandeirinha e te digo: Já sei que já não sou, passei, passou. A lua nos espera nessa rua é só tenta
Oração

Oração

Destaque, Poético
“Me tire desse quarto de hotel e de todas as coisas que entram pela janela; me leve para longe das palmeiras, mais longe e perto das coisas mais macias; me faça esquecer (depressa) os homens ruins — isto é: os que comem cebola crua; me ensine tudo o que eu não aprendi: a cortar com a mão direita, a usar anel, a tocar piano, a desenhar uma árvore, a valsar; e me lembre do que eu esqueci — raiz quadrada, frações, latim, geofísica e “Navio Negreiro”, de Castro Alves; depois, me dê, pelo bem dos seus filhinhos, aquilo que eu não tenho há quase um ano… carinho — de um jeito que eu não sei dizer como é, mas que há, por aí ou, pelo menos, já houve; destelhe a casa, deixe a noite entrar e, juntos, vamos nos resfriar; espirre de lá, que eu espirro de cá… agora, cada um com a sua bombinha, inala
Ciranda

Ciranda

Destaque, Poético
João amava Teresa que amava Raimundo que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili, que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes que não tinha entrado na história. Por Carlos Drummond de Andrade Assista também ao programa "Prosa e Segredos, Ontem, Hoje e Sempre, com Bosco Martins", com pós-produção/texto e edição de Allison Ishy e pós-produção/edição de vinhetas e pílulas de Roque Martins, que divulga o Documento Regional – Raridades com o programa Poesia Total I e II, pílula 24, onde o poeta e jornalista Bosco Martins declama poemas de sua autoria e de Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Astor Piazzolla, Vinicius de Morae
José

José

Destaque, Poético
E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio - e agora? Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não
Um Doutor

Um Doutor

Destaque, Manoel de Barros, Poético
Um doutor veio formado de São Paulo. Almofadinha. Suspensórios, colete, botina preta de presilhas. E um trejeito no andar de pomba rolinha. No verbo, diga-se de logo, usava naftalina. Por acaso, era um pernóstico no falar. Pessoas simples da cidade lhe admiravam a pose de doutor. Eu só via o casco. Fomos de tarde no Bar O Ponto. Ele, meu pai e este que vos fala. Este que vos fala era um rebelde adolescente. De pronto o Doutor falou pra meu pai: Meus parabéns Seo João, parece que seu filho agora endireitou! E meu pai: Ele nunca foi torto. Pintou um clima de urubu com mandioca entre nós. O doutor pisou no rabo, eu pensei. Ele ainda perguntou: E o comunismo dele? Está quarando na beira do rio entre as capivaras, o pai respondeu. O doutor se levantou da mesa e saiu com seu
Rondó de efeito

Rondó de efeito

Destaque, Poético
Olhei para ela com toda a força. Disse que ela era boa. Que ela era gostosa, Que ela era bonita pra burro: Não fez efeito. Virei pirata: Dei em cima dela de todas as maneiras, Utilizei o bonde, o automóvel, o passeio a pé, Falei de macumba, ofereci pó... À toa: não fez efeito. Então banquei o sentimental: Fiquei com olheiras, Ajoelhei, Chorei, Me rasguei todo, Fiz versinhos, Cantei as modinhas mais tristes do repertório do Nôzinho. Escrevi cartinhas e pra acertar a mão, li Elvira a Morta Virgem, romance primoroso e por tal forma comovente que ninguém pode lê-lo sem derramar copiosas lágrimas... Perdi meu tempo: não fez efeito. Meu Deus que mulher durinha! Foi um buraco na minha vida. Mas eu mato ela na cabeça: Vou lhe mandar uma caixinha de Minorativas,