14 Dez 2019

Como 2013 transformou o Brasil

Quando daqui a um bom naco de tempo os dez anos que separam 2010 de 2019 forem sistematizados e recontados na forma de história, já distantes o suficiente para que sejam vistos sem quaisquer paixões, possivelmente um marco se destacará sobre todos os outros. As Jornadas de Junho de 2013. Ali houve uma inflexão — o Brasil estava para mudar. Ainda não há consenso sobre o que foi aquela explosão popular que levou milhões de brasileiros às ruas sem uma pauta clara. Os símbolos das grandes manifestações que ainda tomam o mundo, porém, já estavam lá — a começar pela inescapável máscara de Guy Fawkes, o terrorista católico inglês do século 17 tornado símbolo dos anarquistas contemporâneos após os quadrinhos de Alan Moore e David Lloyd.

Não foi, mesmo, um movimento isolado. Em 2009, no Irã, uma série de protestos espontâneos, a Onda Verde, marcou o questionamento do regime, levando às ruas a juventude de Teerã. No final do ano seguinte, um vendedor em desespero pelo frequente assédio da polícia tunisiana ateou fogo ao próprio corpo. Poderia ter sido um fato isolado, mais um pequeno episódio no cotidiano de um país autoritário. Mas fez explodir um levante popular que, após só 28 dias, derrubou uma ditadura que durava um quarto de século. Estava começando ali a Primavera Árabe, que até o fim de 2012 envolveria dezesseis países. A essa altura, a onda de protestos mundial já era atribuída às facilidades de comunicação das redes sociais. Em maio de 2011, os Indignados espanhóis foram às ruas de Madri contra a reforma da Previdência e o arrocho econômico que vinha da crise de 2008. No mesmo 2011, mas em setembro, americanos tomaram o Parque Zuccotti, no Distrito Financeiro de Nova York, para o movimento que ficou conhecido por Occupy Wall Street. Seu slogan era ‘Somos os 99%’, numa referência à desigualdade econômica no país, por conta da concentração da renda nos 1% mais ricos.

“As Jornadas de 2013 são parte de um ciclo global de lutas”, explicou numa entrevista Bruno Cava, um dos mais dedicados pesquisadores do tema. “Com a globalização, o conceito de geografia mudou. As mobilizações são globais e, simultaneamente, locais, porque funcionam com a formação de um território em rede, que conecta redes e ruas, internet e praças.”

Também no Brasil já havia sinais de que algo estava por explodir. Nos primeiros dias de 2012, cariocas formaram passeata contra o aumento das passagens de ônibus. Em fevereiro, a má qualidade dos trens, também no Rio, levou um grupo de usuários a assumir o controle de uma composição. Em agosto foi a vez de Natal assistir a uma série de manifestações por conta do aumento de passagens — a Revolta do Busão. Daí, em janeiro de 2013, outro aumento de passagens atiçou protestos em Porto Alegre. Em maio, aconteceu em Goiânia. O preço alto e a qualidade ruim dos transportes públicos estavam já na pauta da população. Mas no conjunto de eventos de pequeno e médio porte que pareciam regionais, ninguém se atentou que algo maior se formava.

Ganhou corpo em São Paulo. Em 6, depois 7 e aí 11 de junho, passeatas convocadas pelo Movimento Passe Livre pareciam ir paulatinamente crescendo. Na terceira, após o governador Geraldo Alckmin e o prefeito Fernando Haddad, que estavam juntos em Paris, confirmarem lado a lado que o aumento de passagens iria acontecer, a Polícia Militar paulista foi às ruas de forma agressiva. Naquela noite, prefeito e governador cantaram juntos Trem das Onze, de Adoniran Barbosa. Estavam alienados a respeito do que ocorria. Mas a agressividade policial naquele dia vez os protestos explodirem. No pico, em 20 de junho, 1,4 milhão de pessoas estavam nas ruas, em 120 cidades. No Rio de Janeiro, as diversas mobilizações se estenderam até outubro, com no final protestos contra o governador Sergio Cabral Filho. Acabaram quando a polícia prendeu 23 manifestantes acusados de pertencer aos black blocs e após a morte do jornalista de imagem Santiago Andrade, atingido por um morteiro enquanto filmava a concentração para mais uma passeata. Àquela altura, violência e depredação já faziam parte das manifestações, a paranoia pela possível presença de espiões da polícia consumia grupos dispersos de organizadores, e, por parte da PM, tiros de balas de borracha, prisões por falsos flagrantes, bombas de gás pimenta e lacrimejante haviam se tornado cotidianos.

Uma leitura frequente dentre partidos de esquerda é que 2013 foi, em verdade, um movimento conservador. Bruno Cava é talvez a principal voz dissonante. “Aparatos partidários maniqueístas e velhos intelectuais repetiram fórmulas sem qualquer tipo de pesquisa, apenas para confirmar seus preconceitos sobre um fenômeno complexo”, ele explica. “Junho de 2013 foi um levante da multidão, o resultado de cooperação transversal pela metrópole que conquistou uma expressão política e que se determinou a enfrentar a ordem constituída nas cidades. O pano de fundo são lutas por direitos, por empoderamento cidadão, pela renovação dos métodos.”

Toda história política brasileira desde então pode ser contada a partir das Jornadas. Em 2014, ano de Copa do Mundo no Brasil e eleições presidenciais, tudo pareceu se dissipar. No segundo semestre, o tema saiu do mapa. Como se, apesar de toda a intensidade, os protestos tivessem ficado no passado. Foi uma campanha eleitoral marcada pela morte de um candidato, o ex-governador pernambucano Eduardo Campos, num acidente de avião. Pleito disputado palmo a palmo. O tucano Aécio Neves foi ao segundo turno por pouco, disputando cada voto com a pessebista Marina Silva. Aécio contou com a ajuda da campanha petista, que o considerava um adversário mais fácil de derrotar no segundo turno e por isso atacou pesadamente Marina. Só que não foi. O violento segundo turno terminou praticamente empatado entre Aécio e a presidente Dilma Rousseff. Com 51,64% dos votos contra 48,36%, ela se reelegeu.

Àquela altura, já havia começado discretamente, em Curitiba, a Operação Lava Jato.

Em campanha, tanto Marina quanto Aécio falavam que seria preciso fazer um reajuste econômico doloroso no país. Dilma sustentou que a economia estava bem. Não estava — e, em seu segundo mandato, ela pôs no ministério da Fazenda um economista liberal para fazer o reajuste. Sua popularidade nunca mais subiu. Ao mesmo tempo, Dilma caía sem perceber numa armadilha dupla.

A marca de seu governo, ainda seguindo a leitura de Bruno Cava, foi a de um par econômico baseado em crescimento e inclusão social pelo consumo. A ferramenta usada foi a reedição do desenvolvimentismo já aplicado nos anos 1950 e 70. Esta política marcaria uma distinção entre a prática do PT no governo quando contrastada com a de uma política econômica liberal. Mas ela apresentou dois problemas. O primeiro, no impacto das grandes obras. De Belo Monte aos preparos para Copa e Olimpíadas, os mais pobres foram os mais afetados — com remoções e uma piora geral de seu ambiente. Só que vai além. “As políticas dos campeões nacionais e os arranjos do neodesenvolvimentismo”, escreve Cava, “que deveriam avançar o país ao futuro terminavam reintroduzindo no mais moderno aquilo que deveria ser superado, reeditando noutros termos a política dos coronéis, o clientelismo, a exploração e a corrupção sistêmica.”

Com grandes gastos do Estado vem, junto, a corrupção. Uma história tipicamente brasileira.

E porque a corrupção havia sido centralizada, a investigação que levou a sua descoberta não foi difícil. Demorada, talvez. Mas não difícil. As Jornadas de Junho reclamavam, em essência, do mau funcionamento do Estado. Políticos de todas as cores ideológicas olharam para o lado, não ofereceram resposta, e seguiram como se nada houvesse ocorrido. Na falta de um alvo para apontar, os resultados iniciais da investigação promovida pela Lava Jato foram abraçados. A corrupção dos políticos era a responsável pela má gestão do Estado. Uma nova categoria de protestos veio à tona — os da turma de camisa da Seleção. Desta vez, tinham uma pauta clara: o impeachment de Dilma. Algo novo estava surgindo no país. Um movimento de massas à direita que, com a Greve dos Caminhoneiros de 2018, mostrou ter também uma base popular.

Outro professor, Christian Lynch, da Uerj, chama o que surgiu a partir dali de Revolução Judiciarista. Ele compara a ação de jovens procuradores e juízes contra a corrupção ao movimento tenentista, que também promoveu uma mudança radical no Brasil, levando ao poder Getúlio Vargas. O símbolo deste processo é o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal. “Barroso cedo apostou na revitalização do direito constitucional como disciplina, convertendo-o em instrumento prático voltado para promover a concretização de valores como os direitos humanos e a democracia liberal”, ele escreve. Para o ministro, o Supremo deve ser ativista, um intérprete da Constituição que promova um processo de liberalização da sociedade. “É um neoliberal progressista: revela-se tão simpático às reformas de Estado promovidas por Fernando Henrique Cardoso quanto aos programas sociais adotados pelo Partido dos Trabalhadores.” E entre suas defesas mais veementes está a de acabar com a impunidade dos ricos, que raramente eram presos. Esta meta é compartilhada por toda uma nova geração de procuradores e juízes de primeira instância.

Curiosamente, embora observando o Brasil por ângulos distintos, tanto Cava quanto Lynch fazem elo com O 18 de Brumário de Luís Napoleão, estudo clássico de política escrito por Karl Marx em meio às revoltas parisienses de 1848 que levaram ao golpe de Estado dado por Luís Napoleão Bonaparte, sobrinho do general feito imperador. No texto, Marx observa como uma revolta popular tenta ser controlada pelas elites políticas, desemboca no caos, e termina com a busca por um homem forte que dê um jeito na situação. “Tudo bem pesado”, escreveu Lynch em 2017, “corremos o risco de que, das eleições presidenciais do ano que vem, saia o nosso 18 Brumário, com seu respectivo Napoleão, um homem forte com discurso de união nacional, cuja autoridade carismática consolidará de modo ordeiro as conquistas da ‘revolução’.”

De fato, um político que representa o pulso forte foi eleito para trazer ordem ao caos.

É impossível olhar para a Lava Jato, após as conversas vazadas pelo site The Intercept, sem reconhecer que houve problemas na operação. A esta altura, o ativismo judiciarista está em xeque e uma disputa ocorre no meio do Supremo. O presidente eleito para dar ordem ao caos, ao invés de consolidar ‘as conquistas de modo ordeiro’, aposta em mais caos. É, como previu Marx, um presidente de perfil forte. Mas sua meta não é a união nacional.

Esta é uma história que ainda não acabou e que, provavelmente, ainda está cedo para ser lida. Mas, quando alguém fixar os olhos nos últimos dez anos não poderá deixar de reconhece-lo: em 2013, o Brasil se transformou.

Leia: O 18 de Brumário Brasileiro, de Bruno Cava.

Leia: A Revolução Judiciarista, de Christian Lynch. (Em PDF.)

O avanço científico alcançado na última década foi imenso. Foram muitos. Selecionamos um por ano pelo nível de interesse dos editores do Meio, mas eles vão muito além de uma simples lista e passam pela mudança de curso de uma doença a uma maneira de ouvir os cosmos.

Já em 2010, pesquisadores publicaram o primeiro genoma quase completo de um antigo Homo sapiens, iniciando uma década revolucionária no estudo do DNA de nossos ancestrais. Desde então, mais de 3 mil genomas antigos foram sequenciados, incluindo o DNA de Naia, uma menina que morreu na atual região do México há 13 mil anos. Em 2011, um estudo mostrou que o uso preventivo de medicamentos antirretrovirais reduziu bastante a transmissão do HIV entre casais heterossexuais, uma descoberta confirmada em estudos seguintes que incluíram casais do mesmo sexo. Em 2012, duas equipes do Grande Colisor de Hádrons do CERN  anunciaram a detecção do bóson de Higgs. A descoberta era a última peça que faltava no Modelo Padrão, a teoria espetacularmente bem-sucedida — porém incompleta — que descreve três das quatro forças fundamentais da física e todas as partículas elementares conhecidas. Em 2013, a Agência Espacial Europeia lançou Gaia, uma sonda que calcula distâncias de mais de um bilhão de estrelas na Via Láctea, além de dados de velocidade de mais de 150 milhões de estrelas. Esses dados ajudaram os cientistas a fazerem um registro tridimensional de nossa galáxia natal. Em 2014, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas divulgou sua quinta avaliação da realidade e das consequências das mudanças climáticas e, um ano depois, vários países negociaram o Acordo de Paris, o acordo climático global com o objetivo de manter o aquecimento abaixo de 2oC — que cientistas e líderes mundiais consideram um limiar perigoso. Em 2015, o observatório LIGO dos Estados Unidos captou o tremor secundário de uma colisão distante entre dois buracos negros. A descoberta permitiu uma nova maneira de “ouvir” o cosmos. Foi a confirmação do que, em 1916, Albert Einstein propôs sobre as ondas que se deslocam através do tecido do espaço e do tempo. Em 2016, cientistas identificaram o vertebrado de maior longevidade já conhecido: o tubarão-da-groenlândia. Ele pode viver pelo menos 272 anos. No mesmo ano, arqueólogos revelaram o primeiro cemitério dos filisteus. Em 2017, astrônomos encontraram o primeiro objeto já detectado formado em outro sistema estelar a passar pelo nosso. E em outubro do mesmo ano, astrônomos anunciaram a primeira detecção confirmada de ondulações no espaço-tempo, chamadas ondas gravitacionais, criadas por esse tipo de fenômeno violento — e visível. Em 2018, a Nasa anunciou que seu veículo espacial Curiosity havia encontrado compostos orgânicos em Marte. Foi a primeira vez que pesquisadores encontraram água em grande quantidade no planeta vermelho. Em abril de 2019, os cientistas do Event Horizon Telescope revelaram a primeira imagem da silhueta de um buraco negro, graças a uma enorme iniciativa global para observar o centro da galáxia M87.

Essa foi a década em que a forma como assistimos TV mudou. Até então, as mudanças eram mais cosméticas: telas planas substituindo TVs de tubo, imagens em alta definição, mudança do sinal de analógico para digital. Até mesmo o que chamamos hoje de era de ouro da TV em que as séries passaram a ter longos arcos narrativos, começou na virada para os anos 2000. Mas foi na década de 10 que o streaming dominou.

A Netflix foi fundada em 1997, e nos primeiros dez anos atuou como locadora de DVDs que cobrava um preço fixo por mês e enviava o discos pelos correios para seus assinantes. Foi em 2007 que lançou seu serviço de streaming. Em 2009, faturou em torno de US$ 50 milhões com ele; em 2010, o faturamento passou dos US$ 500 milhões, operando ainda apenas nos EUA. Em 2011 começou sua expansão internacional, lançando o serviço na America Latina, incluindo o Brasil. A expectativa é de que encerre 2019 com presença em quase 200 países e com faturamento em torno dos US$ 20 bilhões.

A HBO lançou seu serviço de streaming, HBO Go, em 2010, mas durante toda a primeira metade da década o serviço era disponível apenas para quem já tinha HBO na TV a cabo. No Brasil, só no final de 2017 se tornou possível assinar o serviço sem precisar da assinatura de TV paga. Por aqui, a Globo lançou o Globoplay em 2015. Agora no final do ano ganharam a companhia do Disney+ e Apple TV+, enquanto para o ano que vem estão previstos ainda o lançamento de serviços da NBC e Discovery. Vamos assistir uma animada concorrência nesta próxima década.

Enquanto o streaming cresceu, a TV tradicional perdeu espaço. Desde 2010, Mary Meeker passou a incluir um slide em sua tradicional apresentação anual de tendências da Internet. O novo slide mostrava o percentual de atenção dedicado a cada meio, junto do percentual das verbas de publicidade que aquele meio se apoderava. Naquele 2010, TV dominava 43% do tempo que dedicávamos às mídias, e abocanhava 43% do faturamento publicitário. Jornais já não conseguiam muita atenção, mas ainda recebiam parte relevante do bolo, enquanto o digital começava a ganhar os olhos das pessoas, mas ainda sofria para conquistar verbas. Com o passar da década, mudou. Na versão apresentada este ano, com dados de 2018, as assimetrias quase todas sumiram. Mas o tempo que passamos vendo TV caiu para 34%, e as verbas de publicidade também. Em 2019 o faturamento global com publicidade dos canais de TV tradicional cairam 4%, a maior queda da década. No Brasil, a Globo está se movendo aceleradamente para esse novo mundo, integrando suas diferentes operações em uma única empresa para se adaptar aos novos tempos.

Mas talvez o maior sinal dessas mudanças esteja na lista de indicados para o Globo de Ouro de 2019. A surpresa não se deu apenas pela forma como séries produzidas para o streaming dominaram as indicações, mas principalmente pelo fato de que pela primeira vez, nenhuma produção de TV tradicional foi indicada ao prêmio.

E… As dez melhores séries da década, segundo a revista Time.

Após a derrota vexaminosa por 7 a 1 da Alemanha, na Copa de 2014, um grupo de comentaristas passou a pedir um técnico estrangeiro na Seleção brasileira. O tema chegou a ser discutido dentro da CBF. Muitos técnicos brasileiros vieram em defesa do próprio trabalho — mais destacadamente, Vanderlei Luxemburgo. O debate sobre se havia ou não defasagem no trabalho local se estendeu por seis anos.

Em 2019, com o Flamengo de Jorge Jesus e o Santos de Jorge Sampaoli, acabou. Uma onda de técnicos estrangeiros está chegando.

E VOLTANDO À ATUALIDADE, OS MAIS CLICADOS DA SEMANA:

1. Twitter: Um esquete dos Trapalhões que parece remeter a hoje em dia.

2. Nasa: Satélites cruzando o céu brasileiro.

3. ValorInvest: Descubra se você caiu na malha fina.

4. Vogue12 filmes que você não pode perder no Festival do Rio.

5. Estadão: Zozibini Tunzi, a nova Miss Universo.

Fonte: @Meio

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