Aos noventa anos Manoel de Barros se considera um songo

Manoel de Barros e o amigo Bosco Martins
Especial para a Revista Caros Amigos Ano X, Número 117, Dezembro de 2006,
por Bosco Martins

“Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens”.

O poeta Manoel de Barros, que faz aniversário em 19 de dezembro, nos presenteia com um poema inédito, em que se considera um songo. O poeta fala ainda sobre mitos, seu amor por Stella, companheira há sessenta anos e vanguarda primitiva.

O mito se encontrava apoiado na balaustrada da embarcação, olhando andorinhas que se dirigiam ao pôr-do-sol. A cena se passa na década de 40 e o encontro se deu num barco no “mar paraguaio” do pantanal sul-mato-grossense. Transbordando encantamento, o rapaz franzino se aproxima do grande escritor, que todo aristocrático, se abanava num leque. “Andorinhas encurtam o dia”. Ao fazer o verso de improviso, iniciou-se naquele momento a amizade entre o poeta e o seu mito.

Os indícios desta amizade estão na biblioteca Guimarães Rosa, que é conservada na Universidade de São Paulo, onde há exemplares de livros de Manoel de Barros.

As semelhanças entre Guimarães Rosa e Manoel de Barros adquiriram formas evidenciadas em suas trajetórias literárias e pessoais, a partir daquele instante.

As estruturas formais de sua poesia se assemelham do mistério semântico da obra de Rosa. Não só criam e remexem com as palavras, mas se servem de uma maneira bastante simbólica da linguagem popular, mesmo tendo escrito em gêneros diferentes, um em poesia e outro numa prosa poética. Como no romance de Rosa, a poesia de Manoel de Barros também pode ser lida em vários níveis. Existem pontos de leitura que tornam indiscerníveis os limites das palavras rosianas e dos lugares manoelês. Especialista das obras de Barros e Rosa, o professor da Universidade Católica Dom Bosco de Campo Grande/MS, Marcelo Marinho, aponta que “como numa cartografia holográfica, uma espécie de mata, que conforme o lugar de onde olhamos, percebemos outros lugares, de possibilidades infinitas ou quase infinitas, formando ainda uma cartografia hologramática”.

A originalidade lingüística do poeta e do escritor dificulta, segundo o estudioso, a tradução da obra de ambos para outras línguas “alguns tradutores quando não entendem o sentido da palavra a suprimem”, assegura Marinho, que estuda os campos semânticos, que são campos de palavras próximas, das obras de Barros e Rosa. Ambos são autobiográficos na construção de suas obras. A pronúncia para Riobaldo seria Bardo, Riobardo. Bardo é o poeta, rio em italiano, o r do próprio Rosa, daí então podemos perceber que Grandes Sertões: Veredas, qualificada pelo próprio Rosa, era uma “autobiografia irracional” de personagens reais. A guerra de Riobaldo (alter ego de Guimarães) contra Hermógenes significa uma profunda critica contra a literatura da década de 50 que já havia se tornando estéril. Era uma literatura que não dizia sobre nada, não tinha mais para onde ir. Então Riobaldo ao lado de outros jagunços, como Dos Anjos, simbologia para o poeta Drummond, combatem a má literatura. Remanescente desta filiação literária, Manoel de Barros também bebeu na fonte dos clássicos e tem influências dos “faróis” da literatura mundial, como Homero, Valéry e Baudelaire.

Aliado de Rosa contra a poesia ruim, seus personagens também são reais, como Zezinho-Margens-Pláscidas, fazedor de discursos patrióticos; Maria-Pelego-Preto, tão abundante de pelo no pente que o pessoal pagava pra ver; Mário-Pega-Sapo, que esfolava os batráquios a canivete para ver o futuro dos outros nas entranhas e Bernardo, o transfazedor da natureza. Com recorte original e formas diferentes de se fazer leitura de sua poesia, alguns enxergam nela o erotismo. Uma relação quase carnal com as palavras, com a intenção do poeta de dar a luz a novos mundos. Essa trajetória de erotismo pode ser observada desde as pinturas nas cavernas, na pintura rupestre, até chegar então em Guimarães Rosa e Manoel de Barros.

Não é só o primitivo que encanta Guimarães Rosa e Manoel de Barros, os dois tinham o mesmo sistema de trabalho: um caderninho de anotações.

Nesta entrevista, o poeta revela outra forma de se manifestar, responde as perguntas de forma poética, batendo à máquina, numa velha Olivetti.

Bosco Martins – No ano em que completa 50 anos que Rosa lançava “Grande Sertão: Veredas”, você completa 90 anos, também recriando e remexendo com as estruturas formais da literatura. Trace um paralelo do que representa este momento.

Manoel de Barros – Outra vez o Rosa me contou: Precisei botar o nosso idioma a meu jeito afim que eu me fosse nele. Botei minhas particularidades. Usei de insolências verbais, sintáticas e semânticas, me encaixei na linguagem. Fiz meu estilo. Eu achava que o escritor havia que estar pregado na existência de sua palavra. E você, Manoel? Me perguntou. Respondi: eu andei procurando retirar das palavras suas banalidades. Não gostava de palavra acostumada. E hoje gosto mais de brincar com as palavras do que de pensar com elas. Tenho preguiça de ser sério.

BM – O que ficou na sua cabeça de seu encontro com Rosa?

MB – Conheci o Rosa na primeira viagem que ele fazia para o Pantanal. Fui ao encontro de um mito. Porque para mim ele era um mito. Porém no instante que o conheci ele se tornou um ser amável e bom de conversa. Conversamos sobre nada e passarinhos. Foi uma conversa instrutiva!

BM – Aos noventa anos sempre voltamos à infância? Você afirma que seu conhecimento vem da infância, é porque talvez, como Sócrates, tudo que sabemos é que nada sabemos?

MB – A metáfora era essa mesmo. Tudo o que eu aprendera até meus noventa anos era nada; meus conhecimentos eram sensoriais. O que aprendi em livros depois não acrescentou sabedoria, acrescentou informações. O que sei e o que uso para a poesia vem de minhas percepções infantis.

BM – Fale um pouco sobre a infância, a juventude e a velhice.

MB – A um editor que me sugeriu que escrevesse um livro de memórias eu respondi que só tinha memória infantil. O editor me sugeriu que fizesse memória infantil, da juventude e outra de velhice. Estou escrevendo agora minhas memórias infantis da velhice.

BM – Tem uma frase de um ator que nunca me saiu da cabeça.  Dizia que Deus fez tudo bom, só cometendo um erro: a duração da vida. A vida é muito curta e deveria ser não infinita, pois seria muito chata, mas pelo menos o dobro. Duas vidas, uma para ensaiar e outra pra representar. Você concorda com isso?

MB – Concordo sim. E até proponho uma solução científica. Seja esta:
O Tempo só anda de ida.
A gente nasce, cresce, envelhece e morre.
Pra não morrer
É só amarrar o Tempo no Poste.
Eis a ciência da poesia:
Amarrar o Tempo no Poste!

E respondendo mais: dia que a gente estiver com tédio de viver é só desamarrar o Tempo do Poste.

BM – Se a angústia é um espinho na carne, que não se pode tirar, para o poeta a passagem do tempo é angustiante?

MB – Para mim, viver nunca foi angustiante. Tirando o nunca até que venho bem até aqui. Sou como o vaqueiro Santiago. Santiago, no galpão desafiou que não cairia de um cavalo famanaz de brabo que havia na fazenda. Todo mundo zombou do Santiago que estaria a contar vantagem. Então arriaram o cavalo Famanaz e Santiago amontou de espora e chicote. O cavalo saiu disparado e a corcovear de lado e pra frente. Ao passar pelo galpão os peões viram escrito à espora na paleta do animal esta frase: Até aqui Santiago veio bem. Pois é: até aqui…

BM – O que há de se fazer frente ao mistério das coisas? E para o poeta, qual o sentido da vida?

MB – Sou um homem de fé. Me acho incompleto e por isso preciso do mistério. Pra mim a razão é acessório. Preciso acreditar que estou nas mãos de Deus. Sem fé eu me sinto um símio.

BM – O que o poeta teria a dizer sobre o amor, a inveja e o ódio.

MB – Algum tempo sonhei meu socialismo. Seria baseado nas palavras de Cristo “Amar o próximo como a nós mesmos”. Logo enxerguei que o sonho era utópico. Porque o ser humano nasce com ambições diferentes. Ambição de poder. Ambição de dinheiro. Como então amar ao próximo como a ele mesmo? A palavra de Cristo é genial e por isso utópica. A ambição destrói qualquer amor ao próximo. A inveja e o ódio também.

BM – O pintor Mark Shagal, morto em 1985, dizia que a coisa mais importante na vida para ele era o amor, “Se você tem uma mulher a quem você ama, então isso é tudo”.

MB – Encontrei na Stella a mulher e companheira de todas as horas. Na alegria e na tristeza – como nos prometemos no casório. Conseguimos um amor profundo e sonhado em todos os dias.

BM – Um dos seus poucos livros “inéditos” e fora do prelo, Nossa Senhora da Minha Escuridão, é um livro um tanto deísta, meio católico para quem o leu. Você crê mesmo em Deus, ou como a maioria dos poetas, no fundo no fundo, é um agnóstico?

MB – Eu não sou agnóstico. Eu creio em Deus mesmo. E não precisei ler muito para descrer; eu aprendi alguma coisa lendo. Mas onde eu aprendi mais foi na ignorância. A inocência da natureza humana ou vegetal ou mineral me ensinaram mais. Quem não conhece a inocência da natureza não se conhece. Não há filosofia nem metafísica nisso. O que sei, na verdade, vem das percepções infantis. Que não deixa de ser o ensino pela ignorância.

BM – Por que alguns acham graça na sua poesia? Seria por expor um dialeto infantil? “Memória Inventadas – A Segunda Infância”, por exemplo, seria na sua concepção, uma brincadeira de criança?

MB – Aprendi com meu filho de cinco anos que a linguagem das crianças funciona melhor para a poesia. Meu filho falou um dia: Eu conheço o sabiá pela cor do canto dele. Mas o canto não tem cor! Aí veio Aristóteles e lembrou: É o impossível verossímil. Pois não tem disso a poesia?

BM – Seus versos têm mesmo pernas, bocas, sexo, etc? A humanização das coisas está em sua poesia?

MB – Aprendi que o artista não vê apenas. Ele tem visões. A visão vem acompanhada de loucuras, de coisinhas à toa, de fantasias, de peraltagens. Eu vejo pouco. Uso mais ter visões. Nas visões vêm as imagens, todas as transfigurações. O poeta humaniza as coisas, o tempo, o vento. As coisas, como estão no mundo, de tanto vê-las nos dão tédio. Temos que arrumar novos comportamentos para as coisas. E a visão nos socorre desse mesmal.

BM – Se tivesse que ser crítico de seus poemas, quais temas você diria que são mais recorrentes?

MB – Acho que ser gente é o tema tão mais recorrente. Ou não ser gente. Se o tempo não é humano eu humanizo. Amarro o tempo no poste para ele parar. Boto a Manhã de pernas abertas para o sol. Me horizonto para os pássaros. Uma ave me sonha. O dia amanheceu aberto em mim.

BM – Por que os clássicos são sempre necessários e quais influências na sua literatura, dos “faróis” da poesia mundial, Valéry, Baudelaire e Homero?

MB – Penso que a partir dos “faróis” o poema passou a ser um objeto verbal. Por antes ele andava romântico. Recebia inspirações celestes. E até se falava em mensagens poéticas. Depois de Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, poesia passou a ser feito de palavras e não de sentimentos. Poesia é fenômeno de linguagem e não de idéias.

BM – Quanto tempo da “inspiração súbita” demora para virar um poema?

MB – Inspiração eu só conheço de nome. O que eu tenho é excitação pela palavra. Se uma palavra me excita eu busco nos dicionários a existência ancestral dela. Nessa busca descubro motivos para o poema.

BM – Você está escrevendo algo no momento? E além de escrever, o que dá mais prazer ao poeta nos dias de hoje?

MB – Estou escrevendo a terceira parte das minhas Memórias Inventadas. No demais releio minhas velhas preferências literárias. E de tarde, bem na hora do crepúsculo do dia que emenda com o meu crepúsculo, ouço música. A música erudita, principalmente, desabrocha minha imaginação. Acrescento um pouco de álcool que me ajuda a ter visões. Mais tarde elaboro as visões.

BM – De que forma você recebe as críticas positivas e negativas sobre o seu trabalho?

MB – Não sou diferente: as críticas contra fazem um gosto amargo na alma. As boas melhoram o nosso ego.

BM – Você tem fascínio pelo primitivismo e já morou com índios. O que seria o conceito de vanguarda primitiva?

MB – Tenho em mim um sentimento de aldeia e dos primórdios. Eu não caminho para o fim, eu caminho para as origens. Não sei se isso é um gosto literário ou uma coisa genética. Procurei sempre chegar ao criançamento das palavras. O conceito de Vanguarda Primitiva há de ser virtude da minha fascinação pelo primitivo. Essa fascinação me levou a conhecer melhor os índios. Gosto muito também de ler as narrativas dos antropólogos.

BM – Na sua concepção, o ódio não se caracterizou muito neste último século? Para o poeta ainda existe alguma esperança no futuro?

MB – Eu me considero um songo no assunto.

**Martins é jornalista e prepara seu quarto livro de poesia. E-mail: reporterbosco@gmail.com.

UM SONGO
Poema inédito de Manoel de Barros

Aquele homem falava com as árvores e com as águas
ao jeito que namorasse.
Todos os dias
ele arrumava as tardes para os lírios dormirem.
Usava um velho regador para molhar todas as
manhãs os rios e as árvores da beira.
Dizia que era abençoado pelas rãs e pelos
pássaros.
A gente acreditava por alto.
Assistira certa vez um caracol vegetar-se
na pedra.
mas não levou susto.
Porque estudara antes sobre os fósseis lingüísticos
e nesses estudos encontrou muitas vezes caracóis
vegetados em pedras.
Era muito encontrável isso naquele tempo.
Ate pedra criava rabo!
A natureza era inocente.

P.S:
Escrever em Absurdez faz causa para poesia
Eu falo e escrevo Absurdez.
Me sinto emancipado.

Vanguarda primitiva

“Conceito de vanguarda primitiva há de ser a virtude de minha fascinação pelo primitivo”, Manoel de Barros.

A vanguarda primitiva é uma criação coletiva do poeta Manoel de Barros, do jornalista Bosco Martins e do poeta do portunhol selvagem, Douglas Diegues. Surgiu inspirada em uma conversa literária que quer transformar o grau de conhecimento a todos em índice de desenvolvimento humano, através da fascinação pelo primitivo. Não curralesca e nem esotérica, a vanguarda primitiva já rendeu algumas obras em seu caminho para as origens. Kosmofonia Mbyá Guarani, registro literário-musical, da editora o morto q fabla, de Guilhermo Sequera, organizado por Douglas Diegues, traz o seguinte registro de Manoel sobre a obra: “Ouvi os cantos, a voz, os murmúrios dos MBYA Guaranis. Eles me transportaram para a fonte das palavras. Me levaram para os ancestrais, para os fósseis lingüísticos, lá onde se misturam as primeiras formas, as primeiras vozes! A voz das águas, do sol, das crianças, dos pássaros, das árvores, das rãs… Passei quase duas horas deitado nos meus inícios, nos inícios dos cantos do homem”. O programa “O outro lado de la fronteira”, La Máquina de hacer paraguayitos, de Wáshington lphidio Cucurto, editado pela Editora Eloísa Cartoneira, em capa de papelão, “O poeta é um ente que lambe as palavras e se alucina”, de Arlindo Fernandes, o Documentário da artista plástica Wega Nery, de Luiz Taques, a revista literária “Ontem choveu no futuro”, também são obras da vanguarda primitiva, que combatem a má literatura. “O Mandruvá”, um site cultural que ficou só no sonho (sonhar faz parte da vanguarda primitiva), rendeu esta entrevista inédita e publicada agora pela Caros Amigos. Feita as perguntas, o poeta responde escrevendo as respostas a mão, uma de suas formas de se expressar quando quer responder poeticamente.

Cláudia Trimarco – Quais palavras/cores, fatos/fotos melhor explicam o Manoel de Barros? (auto retrato)

Manoel de Barros – Palavra: parvo; cores: o azul; fatos: passei a vida tentando escrever em língua de brincar. Minhas palavras são de meu tamanho; eu sou miúdo e tenho o olhar pra baixo. Vejo melhor o cisco. Minhas palavras aprenderam a gostar do cisco, isto é, da palavra cisco. E das coisas jogadas fora, no cisco. Pra ser mais correto: as coisas que moram em terreno baldio.

CT – Como você define: o Ser Poeta? Se pudesse o que reinventaria?

MB – Poeta é uma pessoa que luta com palavras. Carlos Drummond escreveu: lutar com palavras é uma luta vã. Se eu pudesse reinventaria outro sinônimo para Poeta. Poeta seria o mesmo que parvo. É um sujeito que em vez de mexer com borboletas, pedras, caracóis, mexeria com as coisas úteis.

CT – O que o Pantanal significa na vida do Manoel?

MB – Pantanal é o lugar da minha infância. Recebi as primeiras percepções do mundo no Pantanal. Meu olhar viu primeiro as coisas no Pantanal. Minhas ouças ouviram primeiro os ruídos do mato. Meu olfato sentiu primeiro as emanações do campo. E assim com os outros sentidos. O que eu tenho de preciso são as primeiras emanações que Aristóteles chamaria de nossos primeiros conhecimentos.

CT – A poesia extravasa ou explica seus sentimentos?

MB – Eu acho que não explica nada mas extravasa as minhas primeiras percepções.

CT – Quais são as três coisas mais importantes para você?

MB – As três coisas mais importantes para mim são duas: o amor e a poesia.

CT – Como é o dia a dia do “Manoel”?

MB – Tenho uma rotina quase militar. Acordo às 5 horas, tomo um copinho de guaraná em pó, caminho 25 minutos, tomo café com leite, subo para o meu escritório de ser inútil. Desço meio dia, tomo dois uísques, almoço e sesteio. O resto é pra ouvir música. E ver o dia morrer.

CT – O andarilho é um poeta por excelência? É assim que você se sente?

MB – Andarilho é um ser que honra o silêncio. Essa é uma qualidade de escol. Ele não sabe se chegou. Não sabe pra onde vai. E gosta de rio, de árvore e de passarinho. Andarilho é um ser errático – igual a poesia.

CT – Por que o Poeta se esconde da mídia?

MB – Por temperamento? Não tenho outra explicação. Até não sei se me encontro mesmo. Vai ver que me escondo para aparecer!

CT – Como você vê a ação do tempo sobre o homem?

MB – No meu caso, o tempo estragou mais ou meu corpo. Não posso mais amar total. Não posso mais correr, dar salto mortal, ver longe, nem ouvir longe. Na minha imaginação criadora o tempo não se meteu. Sobre os outros homens, cada um tem sua carga.

CT – Qual o futuro que você vê para a Poesia? E o Planeta Terra tem futuro?

MB – Não sei. Acho que os cientistas estão furando tanto o planeta que não sei nada sobre o futuro. Sou um homem de fé e acredito na terra para sempre. Se a terra permanecer e os seres humanos não voltarem ao chipanzé, que Darwin diz que tomará – se isso não acontecer a poesia permanecerá. Mas, não sei.

Manyphesto da Vanguarda Prymitiva

por Bosco Martins

Vanguarda primitiva
Regresso ao futuro
Palavra-alma guarani
Chamas & orvalho
Origem própria original originalidade selvagem
A fala dos loucos dando flores
Todos os dialetos possíveis
Inventados encantados alucinados
Dialeto-rã
Dialeto-pedra
Dialeto-fogo
Dialeto-bosta

A beleza das coisas nunca vistas
Adivinhação divinação divinare
Em vez do plágio sutil
Vidência

O aproveitamento de todas as ancestralidades desprezadas
Vanguarda primitiva: os dicionários de pedra, de areia, de água, de árvore

O poeta lambe as palavras e alucina o idioma
Para que o idioma volte a dar encantamento

Um coração quente
Com um olho de pássaro
Você pode ver o mundo
De modo diferente

Vanguarda primitiva:
Amor sem data de vencimento
Invenção em vez de cópia
Bárbara e nossa como queriam rimbaud baudelaire oswald

Agora o andarilho
Lambe as palavras até que elas produzam uma alucinação que renova sentidos do mundo no coração.

Duas, três câmeras na mão e mil idéias fervendo na cabeça, nas veias, nos testículos, no corpo todo.

Depois de lamber as palavras
O andarilho caminha alucinado
Atravessa Paris Rio de Janeiro Oropas Nova Yorque e reaparece por encantamento na beira do Rio Paraguai ou na remota província de Campo Grande capital do Mato Grosso do Sul ao mesmo tempo.

Vanguarda primitiva: o português mágico manoelês arcaico à imagem das máfias das academias de letras e de outras máfias letradas

Luz câmera poesia em ação
Nas margens do mundo onde o céu se confunde com as águas
O olhar dum pássaro é uma lente de panavision
Sem hollywood-money nos bolsos
O poeta lambe as palavras e o idioma se alucina para sempre

Uma luz torta
Uma luz rupestre
Uma luz vegetal
Uma luz de vanguarda primitiva
Uma luz diferente
Uma luz que não se pode comprar nas lojas da capital

Agora um andarilho pode ser oito andarilhos

Ayores guaranis terenas bororos xavantes kinikinau guatós
O amor o humor os paradoxos encantatórios
O vôo da palavra
O canto do peixe
O perfume do mistério

Vanguarda primitiva
Um mergulho no desconhecido
Das diferenças
No mistério da luz do Pantanal.

Da amizade

Foi por insistência do Pena Branca, que tinha uma namorada de nome Parê e era apaixonada pelo poeta, que me dei por introduzido no “manoelês archaico”.

Como foca, na década de setenta, iniciei com uma geração de profissionais que me encantava e era mítica para mim, como o poeta.

Era o tempo do Diário da Manhã em Ribeirão Preto, de João Garcia, o Sombreiro, Luciano Lepera, o velho Santanão, Rubens Volpe, José Hamilton Ribeiro, Sérgio de Souza e Otávio Ribeiro, o Pena Branca, entre outros.

Quando vim trabalhar onde o Brasil foi Paraguai, em 1984, me enlacei de vez em minha amizade com o poeta e Stella. Tornando-me um “embaixador” informal dos que vêm do “eixo” em busca de conhecê-lo. Desta feita já se passaram o Zé Hamilton, o repórter de Santa Rosa de Viterbo, José Julio Chiavenatto, Bianca Ramoneda, globais, nosso amigo comum, Apolônio de Carvalho e, recentemente, Gilberto Gil, que desconhecia sua poesia e repisava a todo o momento um único verso decorado às pressas: “Onze horas no lombo das águas”. “Linda essa idéia”, dizia ele a todo o momento. Como um combatente rosiano, lançou-lhe o poeta, o desafio: “O ministro precisa praticar mais o ócio”.

O bastidor dessa relação, que envolve pessoas conhecidas, deverá render um outro livro de vanguarda primitiva, mas esta é outra história.

A última parte da matéria, também uma exclusiva aos jornalistas Bosco Martins e Douglas Diegues, é a entrevista dada ao programa “O outro lado de la fronteira” e que será exibido no final do ano pela TV Educativa Regional do Mato Grosso do Sul, podendo ser acessada pelos leitores do poeta, através do site www.tveregional.com.br. Há que se destacar que a entrevista também é uma raridade, pois o poeta não costuma dar entrevistas da maneira convencional e muito menos aparecer na televisão.

Douglas Diegues – Explica pra nós poeta, essa história da humanização de todas as coisas, uma língua de brincar.

Manoel – É um dialeto infantil. Eu acho que eu passei a vida inteira brincando, por que todo mundo ri da minha poesia. Riem quando compreendem. Comecei a ler meus versos, são todos assim, quanto à razão, inclusive se você for raciocinar em cima do verso, pra procurar o sentido, num acha a idéia, porque a linguagem apaga a idéia, a metáfora destrói qualquer idéia. As idéias depois se quiserem  inventam. Cria uma outra ficção a partir do poema, da frase.

DouglasDepois que você falou disso, comecei a ler e os versos parecem que tem perna mesmo. Perna, sexo, boca…

Manoel – É a humanização que eu faço das coisas. A humanização de todas as coisas. E às vezes, a coisificação do homem. A humanização das coisas, do tempo, por exemplo, aquela linguagem que eu fiz nesse livro aí: “manhã de pernas abertas para o sol, e o sol a fecunda”. Quer dizer, é a humanização do tempo. A manhã como se fosse uma mulher. Tem um texto aí, que se chama pintura. Eu pinto a lápis a história, uma metáfora. Você repara que meus versos todos são humanização da coisa e ou coisificação do homem. Tem um livro meu que chama “retrato do artista enquanto coisa”, esse livro é pensado assim. Lembra o livro do Joyce, “Retrato do artista quando jovem”, só que eu botei enquanto coisa.

DouglasConversando com o Bosco, ele apontou uma coisa interessante: nós estamos no centro do Brasil ou no umbigo dele. Estamos entre as culturas ancestrais, dos índios, as culturas antigas e a modernidade. E eu respondi: sobretudo Manoel de Barros. Depois que eu li Manoel, eu quis ir mais pra trás, ler os índios, pra ver se eu encontrava o Manoel por lá.

Manoel – Risos. É aquela história que nós inventamos do movimento de “vanguarda primitiva”. É uma vanguarda, mas é primitiva, que renova. Ler a palavra, a poesia, renova a gente. Se você entrar em contato com os primitivos, eles são nossa origem. Então, o original vem das palavras, do contato que você tem com o primitivismo, que pra mim é sempre fascinante. Inclusive andei e morei por lá, era uma questão só de fascinação. Não tinha intenção de empregar na minha poesia, não percebia o quanto iria ajudar na minha poesia. Depois dessa viagem que eu fiz pela Bolívia, Equador, Peru, que tive um choque cultural e comecei a mergulhar bem nessa questão. Quando fui morar nos Estados Unidos, chego lá e como a conhecer Picasso, escutar Bach, Beethoven, vou conhecer pessoas que eram artistas de verdade. Era jovem ainda, devia ter meus 27, 28 anos e coisa contemporânea e erudita causou um choque entre o erudito e o primitivo dentro de mim. Eu passava a tarde inteira numa igreja do Século XIII, que foi transportada de avião pedra por pedra de uma cidadezinha da Itália e que foi construída perto de um parque. A Itália tinha dinheiro e fazia coisas grandiosas. Dentro da igreja tinha bancos, e o dia inteirinho até às 10 horas da noite, tinha algum padre tocando Bach, Beethoven, alguma coisa da musica barroca e eu me empolgava, por que era uma coisa que alimentava muito a minha sensibilidade.

BoscoOs poetas só gostam de música erudita?

Manoel – Não, gosto de tudo. Chico, Paulinho da Viola, tudo que toca, mas estou com meu ouvido meio enferrujado.

BoscoEstá precisando usar caramujo para ouvir melhor?

Manoel – Ainda não, pois é só um lado.

BoscoTe angustia envelhecer?

Manoel – A gente envelhece mesmo. Desde os cinco anos eu já era velho, por que uso óculos. Desde os cinco anos descobriram e me levaram ao médico e receitaram óculos. Pra longe. Mas isso nunca atrapalhou a poesia. Pra perto eu tiro os óculos. Eu escrevo sem óculos na minha velha Olivetti.

BoscoÉ bom que se errávamos, começamos de novo.

Manoel – Até que sou razoável, fiz um curso de datilografia lá no Rio. Porque tinha um concurso público que exigia datilografia. Treinei só um pouquinho e tomei bomba.

BoscoConcurso público era moda entre poetas, Drummond, Vinicius…

Manoel – Risos. Era sim. A Stella, minha mulher, também fez esse concurso. Eu morei no Rio de Janeiro desde 1929, passei quarenta anos lá. Emprego público tinha um bom salário, por isso todos queriam.

BoscoSua obra poeta é autobiográfica, de personagens reais, quando os personagens vão se esvaindo, o que sobra para inspiração do poeta?

Manoel – Sabe o que é Bosco? É aquilo que conversamos sempre. O meu conhecimento vem da infância. É a percepção do ser quando nasce. O primeiro olhar, o primeiro gesto, o primeiro tocar, o cheiro, enfim. Todo esse primeiro conhecimento é o mais importante do ser humano. Pois é o que vem pelos sentidos. Então, esse conhecimento que vem da infância é exatamente aquele que ainda não perdi. Porque os outros sentidos fomos adquirindo porque era quase uma obrigação. Era como um calço. Porque tem os repentistas que são analfabetos e sabem fazer uma obra de arte, mesmo que não estudaram? Não é verdade? Fazem a poesia deles sem nenhuma preocupação estética. Todos têm que ler Homero? Poesias têm que ter palavras, uma feira de idéias.

DouglasSuas influências estão naqueles que inauguraram a poesia moderna?

Manoel – No meu caso sim. Eu fui influenciado pelos “faróis” da poesia: Homero, Valéry e Baudelaire que reformulavam a poesia. Eram muito instintivos, mas tiravam as coisas da infância também e eram gênios das palavras. Com 18 anos Baudelaire fugiu pra África pra fazer contrabando num sei do quê

DouglasMesmo com todas as angústias, você parece que é um dos homens mais felizes que conheci. Você vive em paz?

Manoel – É a questão do nascimento, da criação. Eu acho que isso influi muito na vida. Eu sempre tive uma vida muito tranqüila, porque fui criado no Pantanal com minha mãe, meu pai, meus irmãos, sem conflitos, com muito carinho, sem fome, sem notícia de que havia gente passando fome. Tudo isso conta para que minha poesia tenha substância.

BoscoA editora Planeta já encomendou novo livro? Quando vai pro prelo?

Manoel – Estou trabalhando direto no meu próximo livro, que é o “Memórias Inventadas”, agora terceira infância.

DouglasBeleza de entrevista no Estadão.

Manoel – Tenho recebido muitos pedidos de entrevistas. Nunca dou entrevista como essa para vocês. Só respondo por escrito. A última que eu mandei foi lá pra Curitiba. Tem tido uma repercussão muito boa esse livro.

BoscoÉ que você fez esse livro com muito gozo, não é poeta?

Manoel – Eu só faço com gozo.

BoscoÉ como se você escrevesse um primeiro poema. O poema que abre o livro, Estreante, é muito vigoroso. Nós estávamos comentando aquele trecho da “pancas”: “fui morar numa pensão na rua do catete, a dona era viúva e mui vistosa e tinha uma indiana, que tinha pancas…”

Manoel – É uma expressão do português antigo. Pancas era peralta. Risos.

DouglasÉ bacana, começa bem erótica a “segunda infância”.

Manoel – Foi meu editor. Eu mandei 16 poemas e ele falou: “Vamos colocar esse na frente”. Eu pensei: será que vai dar certo? Ele tem a possibilidade pra vender o livro, pra que o livro seja aceito e esse poema parece muito bom.

BoscoSão percepções não só da infância, mas também da sua adolescência, nada como recontá-las através da suas poesias.

Manoel – O que aparece sempre é resultado de percepções, como se estivesse sentindo o mundo pela primeira vez. Isso é provado por Aristóteles que dizia que o conhecimento que conta é aquele que vem pelas percepções da infância, quando você está conhecendo o mundo e é esse que me alimenta até hoje. É verdade que eu estudei, tenho conhecimento fora disso, tenho conhecimento de lingüística, estudei tudo. Isso aí só importa para sua técnica. Por que tem aquele poeta que diz que cultura é o caminho que o homem percorre pra se conhecer. E o Sócrates fez esse caminho pela vida dele e no final concluiu que tudo que ele sabia é que nada sabia.

BoscoNão é porque tinha uma Xantipa para atazanar seus pensamentos?

Manoel – Você sabe que a frase de Sócrates procede. Nós chegamos no fim da vida e não sabemos o sentido da vida.

DouglasA totalidade Manoel? Só Deus?

Manoel – É, nós não sabemos nada mesmo. Podemos discutir coisas aqui outra ali, mas o sentido da vida é incompreensível. Nós somos incompletos, nos sentimos incompletos. Só podemos ser completados pelo mistério.

DouglasNão tem sentido racional, é outro tipo de sentido.

Manoel – Na verdade não tem sentido nenhum mesmo, nós podemos dar sentidos. Essa incompletude nós só podemos completar com o mistério.

BoscoUma vez você falou pra mim que o mistério é a coisa mais real.

Manoel – É a coisa mais real. É real.

DouglasO mistério tem uma consistência de pedra pra você?

Manoel – Tem sim. Risos.

BoscoVocê conversa com Deus? Como é essa sua relação?

Manoel – Acredito. Não tenho esses troços não. Sou um homem de fé, porque sou incompleto mesmo, eu preciso me completar através de uma fé. É uma escapatória. Tenho um irmão que é agnóstico, que não acredita em nada. Agora eu não, eu sou assim. Tenho necessidade. Preciso desse amparo. Grande parte da humanidade tem, os fundamentalistas, os árabes, todos têm crenças, pra se completar. Eu acredito em Deus e conto isso pra todo mundo.

DouglasVocê não tem vergonha?

Manoel – Não. Vergonha não, eu tenho é muito orgulho. Eu acho que a religião completa a gente, é o meu sexto sentido. Nossa fé é o sexto sentido.

BoscoSe Deus está no começo, a origem está lá perto dele? Aqueles que diziam que o poeta é um pequeno Deus, também tem razão, afinal o poeta cria esses encantamentos?

Manoel – É o criador. A natureza foi criada a partir de Deus. O poeta é uma pessoa que mexe com a criação.

Prêmio é ter minha obra distribuída em todo país

Ao completar noventa anos, no dia 19 de dezembro, o poeta Manoel de Barros, receberá, pela segunda vez, o Prêmio Nestlé de Literatura, pelo livro Poemas Rupestres.

Foi seu irmão mais velho e o mais caipira deles, Antonio Venceslau de Barros, que chamou a atenção do pai para a sua vocação. Toninho aconselhou o pai que estava na hora de mandá-lo estudar no Rio, pois ele tinha o “dão” poético.

Se ganhar prêmios for mesmo referência para avaliação de um bom poeta, Manoel de Barros é o maior poeta em atividade do Brasil contemporâneo. Todos os prêmios de poesia no Brasil ele já conquistou. Incluindo dois Jabutis, e este mais recente. Mas o poeta já nós adiantou que mandará seu filho mais velho buscar os cinqüenta e cinco mil reais. O evento do prêmio ocorrerá ate o final de dezembro em São Paulo.

Casado há sessenta anos com a mineira Stella de Leite de Barros, o poeta tem três filhos, Pedro, João e Marta, e oito netos. Apesar de gostar dos prêmios que dão dinheiro, esse, em especial, é mais legal, segundo ele: “Porque além de dinheiro, terá uma edição especial que será distribuída para bibliotecas e escolas em todo o país”.

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