Manoel de Barros: um encantador da palavra

Pedro e Manoel consolidaram amizade através do filme, cujo título remete a uma frase do poeta: “noventa por cento do que escrevo é invenção. Só dez por cento é mentira”. Foto: Stefan Kolumban Hess/Divulgação.

Reportagem publicada pelo Jornal do Commercio em 15 de novembro de 2014.

Por Mariana Mesquita

Cineasta realizou documentário premiado sobre vida e obra do poeta, quando este já tinha mais de 90 anos

Como criança que deseja voar ao contemplar um passarinho, o poeta e cineasta pernambucano radicado no Rio de Janeiro Pedro Cezar, Pepê, se encantou com Manoel de Barros cerca de dez anos antes de realizar sua “desbiografia oficial”, o longa-metragem Só dez por cento é mentira. “Eu simplesmente pirei, virei stalker, queria escrever daquela forma, ler tudo o que ele tinha escrito. Totalmente cismado, apaixonado, num arrebatamento”, relembra.

Dois anos depois, em 1998, num curso de poesia promovido por Elisa Lucinda (“de dizeção, não de redação”, ri ele), veio o presente: Manoel aceitou vir de Campo Grande ao Rio de Janeiro, participar do recital de conclusão. “Coube a mim pegá-lo no aeroporto, no meu Voyage velho. E eu fui arfando, mas segurei minha onda para não ser invasivo”, confessa Pedro Cezar. Aí começou seu contato com o Manoel-pessoa, e a amizade aos poucos se estendeu para o restante da família, envolvendo especialmente Stella, a esposa, Martha, a filha, e Rafael, o neto.

“Manoel era muito tímido, muito calado, muito na dele. Mas, no fundo, era uma vedete enrustida. Adorava ser amado, gostava que os leitores conversassem com ele. Nunca deixou de atender os kamikazes que batiam de sopetão na porta de sua casa, em Campo Grande. E, quando cutucado, ficava feliz”, descreve Pedro.

Aos poucos, a ideia de retratar Manoel foi criando asas. Avesso a entrevistas, o autor dizia que “não tinha cabimento aparecer”. Que estava velho, “uma ruína”. Que ninguém precisava “ter contato com seu ser biológico”: bastava a poesia. Uma das poucas e pouco divulgadas exceções foi a conversa concedida a Bruna Lombardi, que tinha um programa (Gente de expressão) na extinta TV Manchete. “Pouca gente sabe disso, mas Manoel falou com ela. Também, quem conseguiria resistir a Bruna Lombardi?”, diverte-se.

A proposta do filme foi feita numa visita em 2005. Pedro passou três dias cortejando Manoel, que se mantinha irredutível mas, ao mesmo tempo, evitava dar um “não” categórico. Em meio ao processo de sondagem e resistência, o cineasta sentiu que estava importunando Manoel, e desistiu. “Deixa isso pra lá, era só um sonho”, desconversou. “Na hora em que eu falei a palavra sonho, que é muito parecida com a palavra senha, algo foi acionado dentro dele”, emociona-se Pedro Cezar. Manoel rendeu-se: “Venha amanhã de manhã, que eu vou estar pronto para essa entrevista”.

Só dez por cento é mentira acabou mesmo se construindo de sonhos. Além da fala de Manoel de Barros, que funciona como espinha dorsal da narrativa e atraiu ainda mais admiradores para seus livros, o premiado documentário é resultado de licenças poéticas, verdades inventadas e imagens líricas cotidianas (da florada rosa do jambo às pescarias no Pantanal). “O filme conquistou leitores sem se limitar a ser um encurtador de caminhos. Todo mundo que viu, se interessou pela obra dele”, orgulha-se Pedro Cezar.

Procurado pela imprensa de todo o País para comentar a partida do amigo, aos 97 anos, na última quinta feira, Pedro preferiu não ir ao enterro, ontem, em Campo Grande. Mas preserva a memória da grandeza e desapego do poeta. “Era um gênio, alguém com ousadia na linguagem, uma atitude rock’n’roll incomum em alguém que já passou dos 70. O que deixou, vai continuar sendo encantamento”.

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