Na busca do inefável, Carlos Vergara encontra na Serra da Bodoquena um rincão dos sonhos

Foto: Alê Teixeira

Um artista viajante, que tenta retratar o inefável, ou conforme o dicionário, aquilo que não poder ser descrito ou nomeado em razão de sua beleza, força ou natureza, encontrou em uma fazenda da Serra da Bodoquena a nomenclatura perfeita para descrever a experiência vivida durante sua imersão em MS. “É muito bom que vocês saibam, vocês têm aqui o Rincão dos Sonhos”, afirma Carlos Vergara, um dos artistas plásticos mais conceituados da contemporaneidade.

Durante o mês de agosto, Vergara está em Mato Grosso do Sul desenvolvendo a primeira fase do projeto Imersões MS, que objetiva retratar os elementos da cultura da região da Serra da Bodoquena através de suas obras. Financiado pelo FIC-MS (Fundo de Investimentos Culturais de MS) o projeto tem como coordenador Carlos Bertão e apoiadores o fotografo Alê Teixeira e a artista plástica bonitense Buga. “Devemos incluir também o nome de João Vergara, de Valdemir Martins, nosso guia, e de Marco Aurélio, nosso motorista, peças também importantes nessa nossa Imersão”, acrescenta.

Em entrevista exclusiva ao Portal da Educativa, o artista relatou um pouco de suas experiências na região e suas pretensões com projeto, que ainda contempla uma exposição no Marco (Museu de Arte Contemporanea de MS), prevista para o segundo semestre de 2018 e a produção de livro e documentário, com imagens do fotografo Alê Teixeira, como forma de perpetuar o trabalho.

Na região, visitou locais que carregam a história do Estado, como os cemitérios da Retirada da Laguna, a Capela do Senhorzinho ou a Aldeia Alves de Barros. Passou ainda pelo Assentamento Santa Lúcia, em Bonito e pelo sumidouro do Rio Perdido, que descreveu como um dos mistérios encantadores do local. “Um rio que simplesmente desaparece diante dos nossos olhos e depois ressurge alguns metros à frente”, detalha.

Para retratar o que o belo, mas além disso, o que a ambição humana pode causar a um paraíso como esse, Vergara utilizou como técnica a monotipia, que consiste na captura da imagem por meio de prensa e pigmentos. “Eu trago pigmentos, ou pó de carvão e chego num lugar que tem alguma coisa, um relevo, uma plantinha, um bicho que foi atropelado na estrada, eu pulverizo aquilo em cima e vou e capto aquela imagem até mesmo com um lenço”, acrescenta.

Ainda na entrevista, Vergara narra algumas de suas experiências fora do Brasil, aquilo que desperta atenção e o que não lhe agradou pelos locais onde esteve. Já Bertão, conta detalhes do projeto, desde sua concepção em uma mesa de bar em Ipanema (RJ). Veja a entrevista na íntegra abaixo.

Portal-E: Você poderia começar falando da sua vida, da sua experiência, de como tudo começou e o que te trouxe até aqui?

Carlos Vergara: Essa é uma conversa longa em. A gente poderia amanhecer aqui, mas o que eu acho importante é dizer que eu sou artista viajante. Claro que tenho meu ateliê, trabalho muito quieto em casa, mas eu viajo muito. Não existe artista sem curiosidade.

Existe uma diferença, que talvez seja interessante dizer, entre artesanato e arte. No artesanato tem arte e na arte tem artesanato. A diferença é o projeto. O projeto do artesão normalmente é cada vez melhorar sua habilidade manual, fazer cada vez melhor aquilo que ele faz. O artista trabalha na área do desconhecido. Do descobrimento. É uma coisa mais cerebral. Claro que usa artesanato, realiza coisas, mas é diferente.

Foto: Divulgação

Por exemplo, uma imersão em Mato Grosso do Sul, na Serra da Bodoquena. Eu venho com o coração e a mente abertos para ver tudo que há para ver, e se possível, produzir alguma coisa que eu transporte, que eu divida com os outros. É diferente de uma fotografia turística. Porque a fotografia, a máquina vai, da um clique e pronto, reproduz uma paisagem. Mas a arte trabalha com uma coisa que é interessante. É mostrar o invisível atrás do visível. Tem o visível, mas tem o invisível que está atrás do visível, que é, vamos dizer assim, no campo do espírito. E a arte trabalha nesse caminho, para tocar pontos da mente do observador que às vezes estão adormecidos.

Por exemplo, se nós estamos aqui sentados e entra uma música, ela invade teu ouvido e ela é capaz de tocar áreas abstratas do teu cérebro e você ficar encantada. O olho, como eu sou um artista plástico e a janela de entrada é olho, nós somos muito pragmáticos, a gente já é treinado desde criança, a usar o olho para reconhecer as pessoas, o claro, o escuro, o perigoso; o alto, o baixo.

Para você usar o olho poeticamente é um esforço intelectual. Então arte é um caminho duplo. Eu boto lá, faço um esforço em sua direção, mas você também faz um esforço na minha, para perceber o ‘porquê’. Porque trabalhar com as sementes, cascas de sementes assim? Então são coisas encontradas caminhando ai pelas fazendas, que eu to utilizando para tentar montar não uma reprodução do que é Mato Grosso do Sul, mas tentar provocar, o artista pretende, gostaria de provocar um ‘HAM?’ um susto, uma surpresa.

Como um poeta, por exemplo, que trabalha com as palavras do dicionário. O dicionário tem todas as palavras que nós usamos diariamente. Qual é a diferença do poeta? Ele consegue juntar duas palavras que parecem ser novas. São velhas palavras, que a gente já conhece, e de repente elas parecem, pela situação que foram colocadas, novas.

A mesma coisa o artista visual tenta colocar coisas, que vamos dizer assim, são corriqueiras, numa situação que possa provocar um susto, um espanto. Existe uma palavra na nossa língua que eu acho que explica a pretensão do artista, chamasse inefável. Inefável quer dizer o seguinte, aquilo que não é explicado por palavras. Esse é o projeto meu.

Existem artistas e artistas. Existem muita coisa. Eu sou a favor de todos eles. O meu projeto é de tocar o inefável.

Portal-E: Seu trabalho e bem diversificado, e como você explicou a pouco, composto por diferentes técnicas. Qual você está utilizando aqui?

Carlos Vergara: Eu estou usando aqui basicamente a técnica chamada monotipia. Eu trago pigmentos, ou pó de carvão e chego num lugar que tem alguma coisa, um relevo, uma plantinha, um bicho que foi atropelado na estrada, eu pulverizo aquilo em cima e vou e capto aquela imagem. A monotipia é a técnica mais ancestral do ser humano. Os homens das cavernas quando botaram as mãos na gordura, depois botaram no pigmento e colocaram na parede, foi a primeira vez que se fez arte, ou seja, alguma coisa que se deixou um vestígio, ‘eu passei por aqui, eu existo, eu vivi aqui’.

Vergara utilizou a monotipia para retratar as vagens do Flamboyant, árvore comum na região da Serra da Bodoquena. Foto: Alê Teixeira.

E a monotipia então é uma técnica que gosto muito, como eu te disse, eu sou um artista viajante, eu ando com lenços de bolso e faço monotia em lenços. Chego a um lugarzinho tem uma coisa, depois fotografo aquilo contra a paisagem, porque na verdade quando eu levo embora, eu levei um pedaço do lugar real e a fotografia mostrou que lugar era aquele. Então eu to dividindo com os outros uma experiência que pode ser mais poética do que turística.

Eu gosto muito de trabalhar no campo. Vou para lá e observo vestígios, rastros, coisas, tudo. Então é uma técnica que não é invenção minha. Tem 300 milhões de anos. Desde a pré-história e vários artistas de todas as épocas utilizaram. Então não está nessa habilidade o valor do meu trabalho, acho, mas sim nas escolhas que eu tento fazer.

Portal-E: Sobre essa experiência de retratar a Serra da Bodoquena, o que você pode destacar até agora? O que te encantou, nos fez especiais em relação aos outros lugares que já foi?

Carlos Vergara: O Brasilzão imenso é uma ‘ssss’, um petisco para gente. Cada lugar tem seu, vamos dizer assim, aroma, sua coisa. Eu, como te disse, sou um artista viajante não só no Brasil. Quer dizer, eu fiz coisas na Capadócia, no Cazaquistão, no Turquistão, no Japão. Então eu sou um artista que gosta de viajar e que gosta de tentar captar essa coisa inefável do lugar onde eu fui.

Para mim está sendo, aqui eu fiz uma foto de porta de fazenda que passamos de carro e eu fiz questão de fotografar porque eu acho que é muito bom que vocês saibam, vocês tem o Rincão dos Sonhos, era o nome da fazenda, e Bonito e a região do Bodoquena é um Rincão dos Sonhos, porque você vê cada coisa que é…

Portal-E: O que te toca aqui?

Primeiro tem essa coisa da exuberante natureza. Uma generosa natureza. Agora, você vai me perdoar, mas eu não sou bobo. Existe também o lado muito triste, que é uma ambição financeira desenfreada que ameaça tudo. Então essa coisa é do real, as duas coisas convivem. O que seria interessante, o que eu gostaria, por exemplo, de oferecer com o meu trabalho, é ajudar as pessoas a se tocarem que podem perder o que tem, por ambição, por voracidade financeira. E aí não terão de volta e isso é uma coisa séria.

Quer dizer, eu não vim fazer um discurso político, só que não existe arte sem política. Têm os dois lados da questão. Então uma pequena semente, uma pequena coisa que seja deslocada do seu lugar, porque a monotipia você faz uma coisa e quando você desloca isso para um museu, por exemplo, uma galeria de arte, é outro lugar completamente diferente, você lê diferente.

Portal-E: Fale um pouco das duas experiências fora do Brasil, das curiosidades que encontrou por esse mundo.

Eu fiz uma grande viagem para Turquia. Fui duas vezes para Capadócia trabalhar e eu fiz uma exposição no Rio de Janeiro que chamava Huzun, que é uma palavra turca e significaria o nosso ‘saudade’. Só que o nosso ‘saudade’ é um sentimento individual nosso, de falta, de perda. O Huzun para os turcos é coletivo. Perda coletiva, uma perda histórica. Eles percebem o que eles perderam. Tudo, se você pensar como era o caminho da seda, da China até Veneza, passava por ali. Tudo, ou foi inventado, ou passou por ali. É inacreditável.

Eu fiz uma exposição e veio uma senhora, foi uma coisa adorável, eu gosto de contar essa história porque para mim foi adorável. Ela chegou para mim e falou: – O senhor é o Vergara?, eu disse ‘Sou’. Ela: – Eu queria lhe agradecer muitíssimo. E eu, ‘ué mas porquê?’. Ela: – O senhor não sabe, o senhor me trouxe a Turquia. Eu fui à Turquia por essa exposição. Eu sem graça disse ‘Pô que bom, muito obrigado e tals’ e daí foi incrível, porque ela me falou: – Posso fazer um pedido? Da próxima vez o senhor pode me trazer a Grécia?’. E foi delicioso, porque ela tinha sentado, ficado olhando e então ela tinha tido uma experiência que eu dividi com ela entendeu. Que é uma experiência que não é ver fotos de viagem. É um pouco mais. Então quer dizer, essa é minha tentativa. Às vezes eu consigo.

Portal-E: De onde surgiu esse projeto da Serra da Bodoquena? Porque a Serra da Bodoquena?

Carlos Beltrão: Eu vou te contar a história. Há uns dois anos eu conheci o Vergara, fui ao ateliê dele e falei que era de Bonito. Ele disse, ‘poxa, tem alguma coisa que me atrai ali. Eu gostaria muito de conhecer a região’ e aí combinamos; vamos seguir essa conversa. Umas duas ou três semanas a gente combinou, sentou num bar em Ipanema e com duas garrafas de vinho surgiu o projeto, basicamente isso. Porque ele era tão apaixonado em conhecer a região, por tudo que ele tinha feito em outras regiões e aí ele veio para cá. E nós concebemos o projeto. Porque para mim o que o Vergara faz não é retratar uma região, é retratar a alma de uma região.

Aí começamos com essa primeira parte do projeto e tivemos essa gentileza do FIC, do Estado acreditar no nosso projeto.

Portal-E: Onde já visitaram?

Carlos Vergara: Eu tenho uma ligação grande com as etnias indígenas, então no sábado fomos a Aldeia Kadiwéu (Aldeia Alves de Barros). Eu já fiz um grande trabalho com os Guaranis no sul do Brasil. Eu de nascimento sou gaucho, vivo no Rio de Janeiro desde 54, mas eu tenho uma, vamos dizer assim, um cuidado, um apego e um temor das etnias indígenas que estão se esfarelando. Então eu fui lá para ver, fui muito bem recebido por eles. É a segunda vez que eu vou.

Fui visitar a Capela do Senhorzinho, que é uma coisa muito impressionante. O que tem lá dentro, eu viajei muito pelo mundo, eu vou muito, por causa dessa coisa do inefável, a lugares onde a ideia do sagrado existe, então eu fui a muitas mesquitas, muitas igrejas. Eu fiz uma exposição grande em uma igreja em Paris, agora no ano passado, convidado pelo padre da igreja, o que foi para mim quase uma homenagem. O padre viu meu trabalho e me convidou para fazer uma exposição dentro da igreja. E quando eu entro num lugar como esse assim, numa mesquita, eu sempre paro, fecho um pouco o olho e digo assim: ‘meu Deus, permita que eu veja tudo que há para ser visto, que eu sinta tudo que há para ser sentido. Que eu não fique olhando só a superfície das coisas’, porque é uma forma de entrar. Não dá para fazer arte se não for com esse espírito de tentar aprofundar. Dá para fazer pintura, que é outra coisa. Pintar é uma coisa, arte é outra.

Pode usar pintura para fazer arte, mas é outra coisa, pretende outra coisa. Tem uma coisa que está nos interstícios, nas camadas, que talvez consiga provocar no expectador um ‘haam’?

Carlos Beltrão: Só para completar, nós fomos também ao Assentamento Santa Lúcia. Essa parte social é muito importante no trabalho dele também. Também fomos a vários outros lugares. Por exemplo, visitar os cemitérios da Retirada da Laguna, tanto o cemitério dos mortos na Laguna, como o outro, que é dos negros. Então essa parte histórica, social, econômica, ambiental, isso tudo faz parte do todo e o Vergara vem para tentar tirar um pouco de tudo. Como ele falou, não é para tirar fotografia de turismo, da nascente e tal.

Por exemplo, pela segunda vez nós fomos ao sumidouro do Rio Perdido, que é uma coisa fantástica. É um trem que desaparece de baixo da Serra da Bodoquena, dois quilômetros depois volta, passa mais um trecho externo e depois volta para de baixo da terra. Isso tudo, são mistérios.

Carlos Vergara: São mistérios desse lugar, coisas únicas desse lugar.

Portal-E: Explique como é essa relação com a Buga e com o Alê.

Carlos Vergara: A Buga é uma artista independente daqui. Muito gentilmente está me assistindo. Porque ela conhece muito daqui. Então ela pode, potentemente me ajudar. Então quer dizer, ela está sendo uma assistente do meu trabalho, que é uma gentileza dela, porque ela tem o trabalho independente dela. Mas ela tem sido muito gentil e útil. Porque conhece, tem bom humor, que é fundamental, porque se não a gente se chateia né.

O Alê ta documentando tudo e a gente pretende depois ter uma massa de coisas, que sejam coisas reais e coisas, vamos dizer assim, fotográficas e filmes e tal, que possam mostrar a experiência. Como é essa coisa de entrar no lugar, desconhecendo o lugar e o que você pode tirar. Imersão é isso. Sendo imerso num lugar que depois eu vou poder dividir com todo mundo.

Portal-E: Você também deve ter acompanhado o trabalho, visto o trabalho dos artistas plásticos de Bonito, não apenas a Buga, mas como os demais. O que te chamou a atenção no artesanato de Bonito, no trabalho artístico de Bonito?

Carlos Vergara: É uma coisa muito profícua né, porque você tem várias coisas. Você tem não só as coisas indígenas, ontem eu visitei a Cerâmica Udu, que é uma cerâmica de alta qualidade, que é outra coisa, que não é uma coisa, vamos dizer assim, primitiva, popular. É uma coisa mais elaborada. Então, como eu te disse, tem arte no artesanato. Tem coisas que eu gosto e tem coisas que eu não gosto. Tem arte que eu gosto e tem arte que eu não gosto. Mas você tem uma oferta gigantesca para as pessoas que vem aqui, e é uma oferta de levar um pequeno perfume, além dos bombons da Dona Margarida.

Portal-E: Sobre a Exposição. Já temos datas e locais?

Vergara em seu ateliê. Foto: Alê Teixeira.

Carlos Bertão: O projeto prevê que exposição seja no Marco. A primeira mostra seja lá. É a segunda fase do projeto, a exposição. E a terceira seria a composição de um livro e de um vídeo sobre todo esse processo que está acontecendo.

Então em principio, a exposição está marcada para o segundo semestre do ano que vem.

Carlos Vergara: Esse tempo é muito bom, porque as coisas tem que ter uma lentidão boa para poder aprofundar. Do contrário é muito marqueteiro. Muito afobado, coisa para evento. Isso não é um projeto de evento passageiro, é um projeto de alguma coisa que possa ter densidade e deixar algo.

Daí o terceira fase, de ter um livro e um vídeo que vão perpetuar esse trabalho todo. Porque o Vergara depois daqui, vai levar isso tudo para o ateliê dele. Vai trabalhar em cada uma das peças, vai interferir nelas para poder então botar o que falta dele.

Vergara iniciou sua ‘imersão’ no dia 11 de agosto e ficou na cidade por aproximadamente 11 dias. Na Capital, ele participará de duas conversas, nos dias 22 e 23, no auditório do Marco (Museu de Arte Contemporânea de MS). A primeira reunião conta com a participação de Alê Teixeira e Buga, que ajudam o artista a narrar um pouco da experiência na região da Serra da Bodoquena. E a segunda tem a presença ilustre de Maria Adélia Menegazzo e Priscilla Pessoa, para um bate-papo sobre Arte Contemporânea, seus estilos, escolas e movimentos.

Foto: Alê Teixeira

Autora: Kemila Pellin/Portal da Educativa

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