Por 10 anos, amigo caminhou todos os dias ao lado do Manoel homem e poeta

Os cadernos de rascunho eram feitos de folhas de papel grampeadas e capas desenhadas à mão pelo poeta. Foto: Marcelo Calazans.

Reportagem publicada no site Campo Grande News em 13 de novembro de 2014.

Por Paula Maciulevicius

“A minha relação com o poeta é uma relação dupla. Com o homem, o ser humano, a pessoa física e com o poeta. Essa relação com o homem é muito maior que o poeta”. As frases são do amigo Pedro Spíndola, que sem “simostração”, vocabulário do poeta, caminhou lado a lado durante 10 anos, com os dois Manoel. Fosse domingo, fosse feriado, o andar era sagrado.

Pedro saía de sua casa, na Rua Paraíba, em direção à Rua Piratininga. O trajeto era o mesmo diariamente, até a sede onde hoje é a Unimed. O quarteirão pertencia à AABB.

“Ele não recebia as pessoas por timidez. Ele é extremamente tímido”. A conjugação do verbo não aceita passado porque à época da entrevista, Manoel estava no presente. Hoje também é difícil atribuir a fala ao pretérito. Manoel se eternizou, junto das suas obras e ignorãças.

“Passava de três pessoas, era multidão para ele. No coletivo, Manoel era muito tímido”, explica Pedro.

A amizade entre os dois começou em 1982. Foto: Marcelo Calazans.

A amizade entre os dois começou em 1982. Pedro, de formação como técnico em agropecuária trabalhava na comunicação da Acrissul e foi quem fundou o Boletim do Fazendeiro. “Um dia, o irmão dele, Abílio de Barros me perguntou se eu conhecia o poeta. Respondi que só de nome. E ele me disse que Manoel falava que o único jornal que dava para ler era o da Acrissul. Por ser pequeno, objetivo e curto”, recorda.

Num dia de eleição da Associação, Abílio levou Manoel e apresentou os dois. “Ficamos num canto, batendo papo, no que ele me disse que foi “salvo” por mim. Daí surgiu a amizade, trocamos telefone e começamos a ficar amigos”, conta Pedro. O salvar foi, creio eu, no sentido de lhe fazer companhia em meio à multidão do dia.

“Um dia eu sugeri que ele escrevesse para o jornal. Foi ousadia. Ele me disse que não ia escrever porra nenhuma. No outro dia, ele falou que ia fazer. Eu chamava de crônica, depois a crítica chamou de prosa poética”, lembra. Os textos originaram anos depois o “Livro de Pré-Coisas“.

As caminhadas eram para Pedro o percurso da cumplicidade. Para Manoel, a fonte de atualização. “Ele dizia ‘eu sei tudo o que acontece nessa cidade e que era certeza que conversou mais comigo, ao longo da vida, do que com a própria esposa‘”.

Os passos foram cenário para dois documentários. Um deles, “Paixão pela Palavra”, dirigido por Claudio Savaget, à época, diretor do Globo Ecologia. “Foram filmados assim, a base da conversa. Manoel não queria falar. Dizia ‘não falo com ferro‘. Não queria microfone, nem lapela, nem nada”.

Pedro Spíndola coleciona, além de histórias, manuscritos e bilhetes destinados a ele, escrito por Manoel. Foto: Marcelo Calazans.

A gargalhada solta era trilha sonora diária para os ouvidos de Pedro. Que nos anos de convivência, chegou a ouvir da própria dona Stella, esposa de seu Manoel: “você precisa vir mais aqui. O Manoel só ri quando você vem”. Privilégios de quem conviveu por anos com o Manoel homem e o poeta.

O poeta, segundo descreve Pedro, recebia diariamente muitas correspondências, livros do País todo. Na maior parte do tempo, ele lia outros poetas e consultava o dicionário. Os cadernos de rascunho, centenas deles, eram feitos de folhas de papel grampeadas e capas desenhadas à mão pelo poeta. Além da escrita, Manoel criava significados para os desenhos. Passava as palavras para a arte.

“Depois que ele datilografava e mandava para o editor”.

Pedro Spíndola coleciona, além de histórias, manuscritos e bilhetes destinados a ele, escrito por Manoel. “Ao amigo Pedro” vinham pedidos de sugestões de títulos e até a publicação de um dos livros, caso a cirurgia que ele seria submetido desse algo errado.

“Ele falou pessoalmente, vou te deixar duas cópias. Lê uma e se eu não voltar da cirurgia, você manda para publicar. Eu falei que era bobagem, mas fiquei com a cópia. Depois ele voltou, falou traz meu livro. Um tempo depois, saiu e tudo diferente”, conta.

Manoel de Barros era o perfeccionista das miudezas. Nunca se dava por satisfeito, a palavra era alterada até a hora final. Como foi, até uma vez, mesmo depois de publicado.

No Livro das Ignorãças, impresso em 300 exemplares, dois erros foram corrigidos a próprio punho, pelo poeta. “Para apalpar as intimidades do mundo – nesta frase, a digitadora colocou do corpo. E “onde a criança diz eu escuto a cor dos passarinhos – escreveram a “voz”. Ele mesmo corrigiu e assinou o exemplar. O meu era o 201.”

“A impressão que eu tinha? É de missão cumprida. Ele cumpriu sua missão”, fala o amigo de 10 anos, sobre a relação de despedida que Manoel viveu nos últimos meses. “Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas“.

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