Bosco Martins*: “Manoel de Barros, um ser letrado”

Artigo publicado originalmente no site do jornal Correio do Estado em 15 de novembro de 2014

* Bosco Martins é jornalista e diretor-presidente da Rádio, TV e Portal da Educativa

– Deixa o Manoel partir, meu pai,  ele tem o “dão”.

O  Manoel sempre  que  contava essa história abria um largo  sorriso.  Lembrava da sensibilidade do irmão mais “simplão”   que decretou sua sina poética.

Na fazenda do Pantanal o pai ainda imaginava o que seria daquele menino sempre “avoado das coisas e do lugar”. O conselho do irmão mais velho foi quem deu senha para que o menino do mato fosse estudar  em colégio interno

Stella, o único amor de sua vida, sinalizou  ao telefone inconformada que o poeta não estava bem:“anda muito fraquinho. Não é justo o que tá acontecendo com ele Bosco”, se queixava ela; nos emocionamos. Percebi que a coisa era séria  quando Martha, a filha  me enviou o  e-mail: “gostaria de pedir, se for realmente nosso amigo, para respeitar nosso silêncio. O momento não esta propício a visitas.  Obrigada, bjs.”

Havia mais de um ano que não visitava o poeta. Ele estava disponível somente para a família, e mantinha-me informado de sua saúde através de Stella e Martha.

O cara meio desligadão que conheci há anos e que, na maioria das vezes, de tão concentrado ficava  produzindo inutilezas,  parecia agora querer desligar -se de vez.

Relembrei, quando reuníamos em sua casa para praticarmos o ócio e ouvir as histórias que gostava de contar.

Eram tempos de sua juventude estudantil no Rio de Janeiro.  Tempos da  ditadura Vargas.  A convite  do amigo Apolônio de Carvalho, entrou no PCB. Numa manifestação de apoio  do partidão de Prestes ao Governo Vargas se desencantou e se desligou da política. Não sem antes sofrer perseguição. Foi no Pantanal  que  buscou refúgio  da polícia de  Vargas que havia encontrado,  em seu quarto de pensão, material  para provar sua militância comunista. O material era seu único livro inédito e até hoje desaparecido. “Nossa  Senhora da Minha Escuridão”. O poeta  que nunca  misturou  poesia e política se divertia em contar ser aquele seu livro mais religioso.

Manoel como pessoa não era de fazer tipo.  Sua aversão à microfones é conhecida.   Numa única vez que o obrigaram a  falar em um evento no Rio, meio que  empurrado para o microfone, foi curto e grosso em seu primeiro e único discurso: “Tudo que tenho a dizer é que não tenho nada a dizer!!!”. No que me contava ter sido aplaudido à beça…

Mais nem pensei em poesia naquele momento. Queria mesmo era me livrar do microfone.

Saímos pra beber eu, Manoel e o Zé Hamilton Ribeiro, num restaurante  de peixe famoso  em Campo Grande. Fazíamos uma matéria para a revista  “Caros Amigos”. Pauta do editor e amigo comum, Sérgio de Souza. A quem o poeta tinha o maior respeito e o tratava por “mestre”, pois gostava de contar que o “Serjão” havia sido o seu copidesque  depois  de seu retorno  de Nova Iorque, quando fez uns “bicos de jornalista” no RJ.   O garçom  se aproxima e diz:

– O que vai tomar seu Manoel,  um uísque, um vinho, cerveja?

– Qualquer coisa que me deixe tontinho!

Eu só bebo para ter umas tonturinhas!!!

Sobre a morte, um dos  temas  mais  recorrentes  em perguntas  que lhe eram enviadas, Manoel  evitava   responder: não falava quase  nada  sobre ela.

Quando morria  alguém, um parente, ou  amigo ou mesmo um conhecido seu, nunca questionava, nunca analisava. Para o poeta “como o nascer, morrer também é natural, não tem mistério.

Desta forma também lidava com  as doenças, notícias ruins, etc., nunca reclamava de nada.

Outro diálogo sobre a morte e  idade ocorreu alguns anos  antes da minha última  visita.

O poeta completará mais  um ano de idade.  Entrou literalmente em pane.

Estava bastante amargurado; pensando em morrer, bastante depressivo.

Não sei por que a morte não me leva logo. Vou acabar senil.

To velho demais só penso  em morte, morte, morte!!!

A velhice é uma merda!!!  Não consigo mais escrever!!!

Chamaram o médico. Trataram o poeta com remédios antidepressivos.

Só agora percebo ter sido aquele  nosso último encontro. Talvez naquele dia eu o teria  amado mais, abraçado  mais. Como numa crônica de Clarice em  que a vida  é para ser intensamente vivida. E o poeta viveu até a última gota. Mas agora  temos que nos acostumar  ao ser “Letral”.  O Manoel  agora desvive  de seu ócio criativo. Sem mais suas novas palavras.

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